10 abril, 2013

O que se vê o que não se vê: da arte de sonegar a memória

por Marco Weissheimer
do Sul21



A amnésia seletiva que marcou alguns dos pronunciamentos dos proprietários de empresas de comunicação no 26º Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, chamou a atenção nestes tempos de Comissão da Verdade no Brasil. Representantes de empresas apoiadoras e/ou protagonistas de movimentos golpistas e ditaduras que implementaram durante anos a fio as formas mais diversas de censura e de violação de direitos humanos, apresentaram-se como defensores das liberdades e paladinos da luta contra supostas tentativas de “controle da imprensa”. Essas empresas não só apoiaram a censura e ditaduras que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer milhares de pessoas, como construíram impérios midiáticos à sombra desses regimes, ganhando concessões de rádio e tv e generosas verbas de publicidade. Nada disso é novo, mas como esses empresários insistem em sonegar a memória e a história, cabe sempre trazê-las à tona.

O slogan do Fórum da Liberdade este ano é “o que se vê e o que não se vê”. O que não se vê, nunca se viu, é uma declaração que seja desses grupos empresariais a respeito de suas relações com governos ditatoriais que controlaram a imprensa e assassinaram jornalistas. O que não se vê são dirigentes das entidades empresariais que apoiam e patrocinam o Fórum da Liberdade explicarem à população por que, em passado recente, conspiraram para derrubar o governo constitucional de João Goulart e implantar uma ditadura no Brasil.

O que se vê são figuras como João Roberto Marinho, presidente do conselho editorial e vice-presidente das Organizações Globo, dizer que “existem minorias tentando desestabilizar a liberdade de imprensa, com o discurso de buscar regulação”.

O que não se vê: uma avaliação desse empresário tão preocupado com a liberdade, com a posição de seu jornal no dia 4 de abril de 1964: Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições (Editorial de O Globo).

O que se vê: Nelson Sirotsky, presidente do conselho de administração do Grupo RBS, aponta a proposta de criação de um conselho estadual de comunicação no Rio Grande do Sul como um possível “retrocesso à liberdade de expressão”.

O que não se vê: o mesmo Nelson Sirotsky explicar por que sua empresa apoiou um governo que amordaçou durante anos a liberdade de expressão. O jornal Zero Hora, como se sabe, ocupou o lugar da Última Hora, fechado pela ditadura por apoiar o governo constitucional de João Goulart. A certidão de batismo do principal veículo impresso do grupo RBS é marcada pelo desprezo à democracia e pela aliança com o autoritarismo.

O que também não se vê: Três dias depois da publicação do famigerado Ato Institucional n° 5 (13 de dezembro de 1968), ZH publicou matéria sobre o assunto afirmando que “o governo federal vem recebendo a solidariedade e o apoio dos diversos setores da vida nacional”. No dia 1° de setembro de 1969, o jornal publica um editorial intitulado “A preservação dos ideais”, exaltando a “autoridade e a irreversibilidade da Revolução”. A última frase editorial fala por si: “Os interesses nacionais devem ser preservados a qualquer preço e acima de tudo”.

Os interesses nacionais, no caso, se confundiam com os interesses privados dos donos da empresa. A expansão da empresa se consolidou em 1970, quando o grupo adotou a sigla RBS. A partir das boas relações estabelecidas com os governos da ditadura militar e da ação articulada com a Rede Globo, a RBS foi conseguindo novas concessões e diversificando seus negócios.

O que se vê: Julio Saguier, presidente do jornal argentino La Nación, diz que restrições à imprensa em seu país “têm retirado da população o direito de saber o que está errado, reduzindo o poder de mobilização”. Não há nenhuma restrição à imprensa na Argentina. Quem tiver alguma dúvida que vá a Buenos Aires e tente comprar um exemplar dos opositores La Nación ou o Clarín em uma banca qualquer.

O que não se vê: Julio Saguier explicando as acusações feitas pela Justiça argentina contra os donos do La Nación e do Clarín pela obtenção mediante extorsão, da empresa Papel Prensa (fornecedora de papel para a impressão de jornais), durante a ditadura argentina.

Se há algum controle da imprensa hoje na América Latina é o exercido por essas grandes empresas que, além de sonegar a história e a memória, sufocam médios e pequenos empresários, concentram a maior parte dos recursos públicos investidos na comunicação e defendem uma visão de mundo onde figuras como Luciano Huck e Margaret Thatcher são apresentados como modelos de sucesso e empreendedorismo.

O editorial publicado pelo jornal ZH nesta terça-feira, intitulado “O legado da Era Thatcher”, é emblemático, ao dizer: “a chamada Dama de Ferro demonstrou que é possível modernizar uma economia quando há disposição para vencer a resistência de grupos organizados, decididos a não abrir mão do que consideram direitos adquiridos”. Chama atenção o uso da expressão: “do que consideram direitos adquiridos”. De fato, Thatcher (que dizia não existir sociedade, só indivíduos isolados – o que é uma definição interessante para a psicopatia) fez isso, assim como seu grande amigo, o genocida Augusto Pinochet, no Chile, ou como os golpistas brasileiros que também trabalharam para “vencer a resistência de grupos organizados, decididos a não abrir mão do que consideram direitos adquiridos”. O desrespeito pela democracia e pela noção de direito parece estar incrustrado no DNA de alguns setores da sociedade. Foi assim em passado recente. Segue sendo no presente.


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